Discussões com Deus

Angélica de Moraes, 2000

Nem só de espetaculosidades ufanistas vive a cena artística paulistana. Há mostras que são, literalmente, outros 500. Na minúscula e silente Capela do Morumbi, templo secularizado em local de exposições de arte, está em cartaz um trabalho que, com total sobriedade e economia de elementos, desperta na alma dos espectadores sentimentos imensos.

Existe uma arte sacra contemporânea? A resposta é complexa. Se, no entanto, algum dia, alguém for rastrear no País esse tipo de produção, terá necessariamente de reportar-se a artistas que, tocados pela delicada transcendência que parece emanar daquela construção feita de humildes e antigas paredes de taipa, impregnaram de emoção o espaço da Capela do Morumbi.

Daniel Acosta é um desses artistas que soube enfrentar com competência e sensibilidade o desafio oferecido pelo local, realizando a instalação que denominou de A Deriva.

Grafado assim mesmo, sem a craseado, o título nos aponta a ambigüidade que o artista quer discutir: a fé ou a crença no divino, uma ciência inexata, aventura tão brumosa quanto a dos antigos navegadores em alto-mar. Algo que, repensando o lugar do divino, acaba derivando para a reflexão sobre o humano e aflito estar no mundo.

A instalação foi concebida para tensionar o espaço com apenas duas esculturas. Uma delas, a maior, feita das mesmas lâminas de madeira compensada que costumam ser utilizadas em tapumes de obras, está pousada, de modo instável e assimétrico, sobre montículos de argila, de consistência e cor semelhantes às das paredes da capela. Aciona de imediato a imagem de embarcação frágil, mal equilibrada sobre ondas que podem submergi-la.

Essa escultura-barco, no entanto, não tem velame ou quilha, tombadilho ou timão. Assemelha-se mais à sintéticos bancos de igreja, com ornatos vagamente barrocos nas altas divisórias entre fileiras, feitas talvez para sublinhar o recolhimento do indivíduo concentrado em oração.Ou para alojar os remadores.

"Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei minha igreja." E se a pedra for argila, for terra que se esfarela e decompõe? "És pó e ao pó hás de retomar", diz a mesma Bíblia acima citada. No degrau que demarcava a área do hoje inexistente altar da capela, o artista depositou um molde em gesso de seu próprio corpo. Vida em movimento estancada de súbito em branco, cabeça levemente pendente do degrau, índice do interior vulnerável e mortal.

A brancura do gesso desse corpo-ataúde remete à alma, às infinitas orações que o preparam, o embalsamam para a grande viagem, para a grande deriva. E que, não obstante, sinalizam um peso excessivo, inapelavelmente preso ao chão. Algo que deve misturar-se a ele, conforme determinam as palavras bíblicas.

Terra onipresente na capela, nas paredes que são o oposto das suntuosas ogivas góticas. Elas não remetem ao céu nem foram talhadas em ângulos exatos de pedra. Toscas, imperfeitas, fazem lembrar as palavras, essas sim tocadas pela imortalidade, de padre Vieira no sermão da Quarta-Feira de Cinzas: "O homem é pó levantado e pó caído."

Para realizar esse trabalho, Daniel Acosta voltou aos materiais que ajudaram a demarcar sua identidade artística na época da ascensão ao circuito artístico, no começo dos anos 90: o gesso e o compensado. Aos 34 anos e com sólida formação, O escultor vem abrindo caminho cada vez mais nítido em sua geração. Essa instalação na Capela do Morumbi sublinha a densidade de sua trajetória e faz prever vôos ainda maiores.

O artista participou, em maio, da coletiva Território Expandido, mostra patrocinada pelo Sesc-Pompéia e inaugurada na entrega do Prêmio Multicultural Estadão 1999. Mais tarde, ainda no mesmo ano, integrou o Panorama do Museu de Arte Moderna (MAM-SP). Já esteve em outras coletivas de prestígio como Ao Cubo (Paço das Artes, 1997) e Diversidade da Escultura Contemporânea Brasileira (Itaú Cultural, 1997).

Silêncio - A Capela do Morumbi é um espaço com programação extremamente irregular, que alterna grandes artistas e diversos (e previsíveis) desastres. Do passado recente, quando emplacou boas mostras com maior freqüência, podemos lembrar de exposições antológicas como as de Leonilson, Nelson Leirner, Sandra Cinto e Carlos Uchoa. Essa instalação de Daniel Acosta pode e deve ser incluída entre as melhores já exibidas no local. Merece ser visitada com vagar e silêncio.

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