Agnaldo Farias, 2004
Comecemos pelas fotografias e alguns dos temas em princípio banais que Daniel Acosta vem explorando através delas, vacas no pasto, a paisagem com uma árvore caída, um cogumelo (ou será uma bola de golfe?). Observando-as logo notamos que o que interessa ao artista é menos as imagens que elas apresentam; menos as vacas, a árvore, o cogumelo (mas será mesmo um cogumelo?), mas como essas imagens, na medida em que fogem daquilo a que estamos acostumados, oblitera nossa compreensão; demonstram que a despeito da confiança que depositamos nela, a visão é uma fonte inesgotável de equívocos. Imagens, lembram-nos essas fotografias, são quase tão abstratas quanto as palavras, são construções tão caprichosas que basta que se lhe desloque o ponto de vista, altere sua sintaxe, substitua-se ou apague-se um dos elementos que a compõem para que adquiram um significado inteiramente imprevisto ou ao menos fiquem impregnadas de estranheza. Se cada signo possui uma forma, um corpo, nessa exposição, passando do mais abstrato ao mais concreto, das paisagens às arquiteturas, a proposta de Daniel Acosta é desmontá-los para em seguida rearticula-los, cuidando sempre em deixar os nexos nus, como fraturas expostas.
O resultado é que não há como ficar imune aos efeitos desses jogos sintáticos: diante da fotografia de uma árvore caída no campo, que o artista força a ficar vertical girando o corpo da máquina, fazendo do horizonte uma diagonal íngreme, o espectador entorta seu corpo na vã tentativa de readquirir a domesticidade tranqüila da linha do horizonte.
O ponto nodal da poética de Daniel Acosta reside em problematizar o modo complacente como nos relacionamos com as representações, o que faz de cada um de seus trabalhos – fotografia, desenho, escultura, instalação - uma crítica a memória dessas relações que impregnam nossos músculos e mentes, orienta gestos, limita o espectro da percepção, não deixam perceber que as coisas não se desenredam nas suas aparências, não se esgotam naquilo que se vê de imediato, não são meros fenômenos de superfície.
Em Acosta a crítica à percepção ou, dito de outro modo, o reconhecimento dos cinco sentidos como um produto simultâneo da cultura e da natureza, acontece pela via da demonstração sistemática de que, ao contrário da noção corrente que os resolve como termos irredutíveis, esses dois pólos estão paulatinamente mais e mais indistintos. De fato se tudo que há provém da natureza, é natureza modificada, o que dizer daquilo que, sendo artificial, esmera-se por parecer natural? O artista é fascinado por plantas de plástico – plantas falsas? não! verdadeiras de plástico -, placas de fórmica simulando veios de madeira, como também é fascinado por um mundo tão repleto de cifras, objetos tão codificados que basta que os desloquemos para um outro lugar para que eles mostrem sua face insubordinada, como é o caso da maca, objeto tão prosaico mas que, afixado numa das parede do museu, submerge entre as coisas inclassificáveis.
E o que dizer das construções proto-arquitetônicas – quiosques, cabines, banheiros portáteis, caixas rápidos etc –, o formidável elenco de objetos indecisos entre escultura e arquitetura que invadem paisagens, cidades e até mesmo edifícios? São eles que estão na origem desses híbridos fabricados pelo artista e que ele instala dentro de prédios, no interior de museus e galerias, num processo de ocupação equivalente à dinâmica da vida urbana contemporânea, pautada na alta densidade de pessoas e construções, na coexistência entre termos contrários – arquitetura e paisagem - ou mesmo semelhantes – arquitetura dentro de arquitetura.
A cidade é o lugar fértil de onde proliferam formas que escorrem pelo campo afora. Sob sua lógica a matéria natural se metamorfoseia em matéria artificial que, por sua vez, se espelha no natural, enquanto a coisa se metamorfoseia em signo e o signo em coisa. Com suas materialidades ostensivamente artificiais, a base de plástico, fórmica, cores e luzes industriais, com seus vasos transbordantes de folhagens verdes iridescentes, com seu laguinho/piscininha de bordas sinuosas feito de fórmica azul em tudo semelhante aos desenhos de lagos e piscinas em plantas baixas de arquitetura, Daniel Acosta fabrica suas “paisagens portáteis”. A ironia desprendida por esse título resulta da constatação de que muito embora as construções que o artista paródia serem produzidas por tecnologias sofisticadas, não deixa de ser curioso que elas, ao invés de afirmarem sua artificialidade, terminam por simular a natureza – o ponto de partida delas, como de tudo o que existe -, à maneira da folha de fórmica que simula em desenhos invariáveis os veios da madeira, sua origem negada pelo processamento industrial, ou como o falso e exaltado aroma de pinheiro ou eucalipto, a promessa possível de uma vida “in natura”, que se desprende do líquido denso e amarelo esverdeado do desinfetante com que alimentamos a ilusão de purificar nossos aconchegantes lares burgueses.
Texto publicado originalmente em 2004 por ocasião de exposição individual no Museu de Arte Contemporânea de Goiás.